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Hegel, segundo Marx acreditava que “a essência do homem que se confirma enquanto tal é o trabalho”. Entretanto, essa afirmação não parece ser o suficiente para o entendimento de uma filosofia política que visa a uma reconstrução do entendimento do
conceito de consciência de si, presente no movimento contínuo (caracterizado pela luta de vida e morte) pelo reconhecimento. Esse reconhecimento que nos torna consciências de si reconhecidas de modo objetivo, aparece, em um primeiro momento, como necessidade para os sujeitos (que querem se afirmar autônomos) no embate entre si
(consciências de si não reveladas).
Quando as consciências de si se reconhecerem enquanto possíveis consciências
de si reveladas, elas não enxergam no outro sujeito apenas um meio de conseguir seu
intento, mas se entendem mutuamente como dois sujeitos iguais, que, ao fim ao cabo,
têm o mesmo intuito (de serem reconhecidas enquanto consciência de si). Neste quadro,
o que nos resta é tentar entender o modo como a relação submisso e soberano aparece
nesse cenário em que o trabalho seja o modo de dignificar o homem enquanto
essencialmente homem. Para tanto, devemos concordar que o reconhecimento almejado
pelas duas consciências de si mantém relação de equivalência a confirmação da essência
de ser um ser humano. Mas isso não é suficiente, pois o reconhecimento assim
apresentado, de modo unilateral, seria contrário ao que é afirmado na seção 178 da
Fenomenologia do Espírito
A consciência de si é em si e para si quando e por que é em
si e para si para uma Outra; quer dizer só é como algo
reconhecido. O conceito dessa sua unidade em sua
duplicação, [ou] da infinitude que se realiza na consciência de
si é um entrelaçamento multilateral polissêmico. Assim seus
momentos devem, de uma parte, ser mantidos rigorosamente
separados, e de outra parte, nessa diferença, devem ser
tomados ao mesmo tempo como não diferentes, ou seja,
devem sempre ser tomados e reconhecidos em sua
significação oposta (HEGEL, 1992/2002, p142).
Se a consciência de si deve ser “em si e para si quando é em si e para si para uma
outra”, isto é, é em si e para si para outra consciência de si igual a ela mesma, então o
reconhecimento não pode ser unilateral, pois uma vez que entendido dessa forma, passa
a se configurar como uma via de mão única que ao fim ao cabo, não confere a ambos os
sujeitos a dignidade enquanto ser humano. Portanto é multilateral enquanto que se
destina a ambas as partes integrantes do processo envolvido na luta pelo reconhecimento
e é polissêmico na medida em que estamos tratando de duas consciências de si, que se
entendem como conscientes de si, de sua realidade, e de sua essência humana
(KOJÈVE, p. 11), e que expressam a sua certeza de si subjetiva através da palavra “Eu”.
Por esse motivo a imagem que podemos melhor utilizar para identificar essas duas
consciências de si conflitantes é aquela que nos é dada na seção 182 da Fenomenologia
do Espírito, em que ambas consciências de si se vêm como uma espécie de objeto que
funciona de modo independente do objeto usado de modo instrumental
A primeira consciência de si não tem diante de si o
objeto como inicialmente é só para o desejo; o que tem é um
objeto independente para si essente, sobre o qual portanto
nada pode fazer para si, se o objeto não fizer para si o mesmo
que nela faz. O movimento é assim, pura e simplesmente, o
duplo movimento das duas consciências de si. Cada um vê a
outra fazer o que ela faz; cada uma faz o que da outra exige –
portanto faz somente o que faz enquanto a outra faz o mesmo.
agir unilateral seria inútil pois o que deve acontecer só pode
(etuar-se através de ambas consciências (HEGEL, 1992/2002,.
A consciência de si, em certa medida, perceberia na outra consciência de si a sua extensão. O sujeito sabe da necessidade da existência que o outro sujeito tem e que para tanto necessita ser reconhecido enquanto consciência de si. Por esse motivo, as consciências de si devem suspender a sua alteridade uma vez que acreditam que os seus desejos devem ser saciados em detrimento ao desejo do outro. Por esse motivo a analogia de algo estático como a imagem de um objeto refletida pelo espelho, não traria à tona da discussão a ideia de uma consciência de si conflitando com outra consciência de si, uma vez que a imagem depende do movimento do objeto e não a vontade da coisa refletida, respectivamente a consciência de si dominante e a consciência de si dominada, inseridas no embate de vida e morte (NETO, p118). O desejo de ambas as consciências de si é que o outro atue como uma espécie de objeto ativo que tome as decisões necessárias para que o seu desejo seja realizado. Desse modo, “a luta pelo reconhecimento é o processo de estabelecimento de uma identidade através da não
identidade” (PERTILLE, 2000, p.71). Isto é, é a luta pela identidade (pelo ser reconhecido enquanto consciência de si) através da negação da identidade de outrem. Um último aspecto relevante a nossa investigação sobre a relação entre soberano e subordinado é que as consciências de si, antes do embate de vida e morte, não podem ser consideradas consciências de si, uma vez que não colocam em risco a sua própria vida. Não há a luta pela identidade, não há a luta por aquilo que nos traz o
reconhecimento enquanto humanos. A luta pelo desejo de ser reconhecido será melhor
abordado nas linhas que se sucedem.
O movimento dialético envolvido na luta pelo reconhecimento só é possível uma vez que os sujeitos elegem como prioridade o próprio reconhecimento enquanto consciência de si em detrimento ao cuidado com a própria vida. A oposição vida e morte, aparece nesse cenário como uma espécie de marcador definitivo da relação estabelecida entre as partes, em que o resultado final almejado é a relação de submissão e dominação. Isso porque A vida é a oposição natural da consciência,
independência sem a absoluta negatividade, assim a morte é a negação natural desta mesma consciência, a negação sem a independência, que assim fica privada da significação
pretendida do reconhecimento” (HEGEL, 1992/2002, p146). A vida é a oposição natural à consciência uma vez que não é negativa, isto é, que não possui em si uma ação negadora assim como no caso das duas consciências de si. Quando se encontram, elas querem ser reconhecidas, e para tanto precisam negar aquilo que torna o outro igual a si: o reconhecimento enquanto consciência de si. Se o resultado final do embate for a morte, também não existirá o reconhecido, pois assim como a vida, a
morte também é um resultado que nega à consciência de si a verdade objetiva (antes certeza subjetiva) de seu estatuto. O que temos não é apenas uma redução quanto à existência dos seres humanos enquanto fazendo parte de uma natureza, mas as condições para que o reconhecimento de uma consciência de si ocorra. Por esse motivo a luta de vida e morte é o meio pelo qual o sujeito, ou consegue garantir a sua existência enquanto consciência de si, ou se submete ao senhor como servo, ou ainda, perece após o embate.
Nesses três possíveis resultados o que está em jogo não é a simples oposição entre a vida e a morte, mas a ideia de um complexo maior que a referida oposição clássica. O sistema se apresenta como um todo na medida em que a vida é posta em questão, pois desse modo a consciência também pode ser colocada em jogo (NETO, 122), na medida em que é no meio natural que o reconhecimento objetivo das consciências de si pode vir a se expressar. Isso tudo só é possível porque ocorre no meio natural: o homem só é real quando vive no mundo natural (KOJÈVE, 1933-1939, p. 19), assim como o reconhecimento que se tem só é possível objetivamente enquanto ocorre na presença de outras consciências de si que podem reconhecê-lo como tal. Desse modo a certeza de uma consciência de si, eleva-se a uma consciência de si verdadeiramente revelada, pois ao arriscar a vida consegue expor o seu ser para si, ao passo que nega também o ser para si de outrem.
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A destruição da autonomia daquele que perde o embate é uma engrenagem necessária do processo de reconhecimento, uma vez que é através dela que o outro se afirma consciência de si (KOJÈVE, p. 20). Mas a conservação do indivíduo também lhe passa a ser fundamental para a sua existência, como já é fundamental para o seu reconhecimento enquanto consciência de si. Enquanto uma pessoa torna-se sujeito, a autonomia de sua vida não é mais um dever seu, uma vez que opta em manter a sua
própria vida após o embate
No entanto, essa vida, que é eu mesmo e primeiramente
a vida biológica, é o que me escapa absolutamente; encarada
como outro, é o elemento da substancialidade com o qual não
posso me confundir completamente enquanto sou sujeito. É a
substância a substância universal, indestrutível, a essência
fluida igual a si mesma, como reflexão porém, a consciência de
si significa a ruptura com essa vida, da qual a consciência
infeliz experimentará o caráter trágico em sua totalidade
(HYPPOLITE, P176).
Assim quando o sujeito se afirma como consciência de si, ele deixa de fazer parte
daquela natureza que antes era sua exclusividade e passa a manter certa relação de poder com indivíduos que têm a mesma capacidade que ele de dominar. Mas o fato de ser vitorioso lhe confere o estatuto de poder comandar a vida do outro, que antes era livre e fazia parte da natureza enquanto sujeito consciente de si não revelado e autônomo. A vontade desse sujeito infeliz que passa a ser dominado era sua e apenas sua. Ao se tornar servo de seu senhor a vontade realizada não é mais a sua, mas a de seu senhor. Enquanto que o senhor existe para si (HEGEL, 1992/2002, p147), o servo existirá apenas para a vontade do senhor, tornando-o sujeito-coisa. O súdito continua mantendo
contato com a natureza enquanto o senhor necessita do auxílio de seu servo para realizar qualquer tarefa. A humanidade que é conferida ao senhor só é possível porque ele lutou por ela, e ao conseguir o reconhecimento de modo objetivo é que pode se realizar como ser humano. Mas o seu reconhecimento não é um reconhecimento pleno na medida em que A consciência inessencial reconhece a sua humanidade (HEGEL, 1992/2002, p149) e ele não reconhece a humanidade do seu servo, e a toma como consciência inessencial.
Essa consciência inessencial tem a função de realizar os desejos de seu senhor e na
medida que os realiza, afirma a verdade da consciência de si pertencente ao seu senhor.
Ela se nega, por reconhecer em seu senhor a autonomia perdida, mas não deixa de ser
uma consciência de si não revelada. Mesmo assim, esse processo, se estacionado não
poderia ser chamado de reconhecimento porque falta aquele reconhecimento que se dá
em todas as instâncias;
Mas para o reconhecimento propriamente dito, falta o
momento em que o senhor opera sobre o outro o que o outro
operaria sobre si mesmo; e o escravo faz sobre si o que
também faria sobre o outro. Portanto, o que se efetuou foi um
reconhecimento unilateral e desigual (HEGEL, 1992/2002,
p147).
O reconhecimento se dá de modo unilateral e dizer isso é continuar afirmando a
existência de um fator que se torna ausente a uma das consciências de si, que não é o reconhecimento enquanto consciência de si. E esse fator é tão importante quanto o reconhecimento, porque faz parte da constituição do ser humano, enquanto ser humano. O que deve ser revisto, antes de tudo, são dois aspectos cruciais que são complementares entre si. O primeiro “operar com o outro o que o outro operaria sobre si mesmo” (HEGEL, 1992/2002, p.191) e o segundo “o reconhecimento coloca a consciência de si diante de outra consciência de si através de certa relação de semelhança enquanto
que é um outro” (NETO, p.125).Isto é, é porque a consciência de si revelada se deparou com outra consciência de si revelada (ambas revelações subjetivas), cuja similitude fez-se perceber, e a luta pelo reconhecimento (reconhecimento esse, que é entendido como uma espécie de potencialidade de ambas) precisa de uma luta que envolva a vida e morte. Por esse motivo é ao agir de modo independente para alcançar aquilo que o senhor deseja, a consciência servil daquele que se sujeita não pode mais ser vista apenas como instrumento de realização dos desejos de alguém, mas é a expressão de uma atividade reflexiva de uma consciência de si não reconhecida, que opera com o outro aquilo que o outro não opera consigo e ao mesmo tempo reconhece o senhor enquanto consciência de si, mesmo negando esse estatuto para si.
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A dialética do senhor e do escravo só é possível por causa da relação
desequilibrada estabelecida a partir do momento em que uma consciência de si torna-se
reconhecida e a outra não. Do esforço da consciência de si não reconhecida resulta o
produto final de seu trabalho. Mas aquele que serve ao seu senhor não se reconhece
porque faz as coisas para o outro, mas por se reconhecer em outra consciência de si
(NETO, p.126). Neste sentido, dizer que uma consciência de si se desenvolve mais que
outra, é afirmar que por causa de algum fator externo a si, ela consegue ser distinta
daquela consciência de si reconhecida por ela. Essa consciência de si passa por um
processo de formação, ela se molda de acordo com as necessidades do seu trabalho, e
ao mesmo tempo, transforma os objetos da natureza para melhor ajudar o seu senhor
É, portanto, o trabalho que forma ou educa o homem a
partir do animal. O homem formado ou educado, o homem
completo e satisfeito com sua completude, é necessariamente
não senhor, mas escravo, ou no máximo aquele que passou
pela sujeição. Não é nas coisas que a consciência reconhece a
sua autêntica estrutura, sua densidade e solidez interna, mas
(em outra consciência. (KOJÈVE
Ao negar-se, em um primeiro momento, o processo de formação da consciência de si verdadeiramente autônoma inicia-se: o escravo precisa negar o seu ser para si caso deseje manter a sua própria vida. É o medo da morte que vai iniciar esse processo de formação da consciência de si verdadeiramente autônoma, pois está presente na consciência de si, ao passo que esse medo não está presente no senhor, apenas no servo (HEGEL, 1992/2002, p150). Por saber o como as coisas são na realidade natural, aquele que é escravo vai querer modificar a sua situação: ele sabe o que é ser reconhecido por causa da figura de seu senhor. Ele o reconhece e sabe que o senhor depende dele para que o reconhecimento seja profundo. O senhor, por seu turno, nunca perdeu a batalha, não
sabe o que é servir ao outro, muito menos vai ter a vontade de mudar a sua situação como o servo tem, pois essa situação é a melhor que qualquer ser humano poderia ter. O servo, na medida em que satisfaz as vontades de seu senhor, acaba tornando-se senhor da natureza: é ele quem vai saber manusear um instrumento para fazer fogo da lareira de seu senhor. Ao trabalhar para o seu senhor quem vai fazer a comida, cuidar da casa, das necessidades mais básicas da vida do seu senhor é o escravo. O desejo refreado pelo trabalho, forma o sujeito (PERTILLE, 2000, p.79), e na medida em que essa formação se estabelece, o senhor não a possui, porque não lhe convém. Não há a questão da
sobrevivência, muito menos a necessidade de se afirmar como capaz de satisfazer as necessidades de outrem, muito menos o medo da morte, pois desde o princípio do embate entre duas consciências de si não precisou mais se afirmar perante outra consciência de si como consciência de si: o seu intento já fora alcançado. Ele não se lembrará mais o que é o mundo hostil e como se defender sozinho por não ter experimentado o medo da morte.
O conceito trabalho, em grande medida, possui dois aspectos, um negativo e outro positivo, assim como a forma. É a partir da atividade reflexiva que o sujeito tem a possibilidade de exercitar a sua própria autonomia enquanto consciência de si. É ao entender como as coisas realmente funcionam na natureza, e observando como o seu senhor age perante ele, que o servo pode inverter dialeticamente a sua posição de súdito, na medida em que se reconhece como possível consciência de si reconhecida. Por ora, o que podemos concluir é que o trabalho, em grande medida, faz parte da essência do ser
humano, mas a restrição deve ser feita no tipo de trabalho. Se pegarmos Marx, e a sua descrição sobre o processo de alienação, veremos que o trabalho alienado não é o tipo e trabalho que dignifica o homem. Entretanto é por causa do trabalho alienado e das péssimas condições de trabalho que a relação estabelecida entre empregado e empregador (antes protagonizada pelas figuras do súdito e do senhor) que vão ocorrer os movimentos sociais.
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BIBLIOGRAFIA
HEGEL, Georg Wilhelm Friederich – Fenomenologia do Espírito – Trad. Paulo Meneses –
3a. Ed rev. - Petróplis, Rj – Editora Vozes/ Editora Universitária Franciscana – 1992/2002.
KOJÈVE, Alexandre – Introdução à Leitura de Hegel – trad. Estela dos Santos Abreu – 1a.
Ed - Rio de Janeiro, RJ – Editora UERJ.
PERTILLE, José Pinheiro - Dialética do Reconhecimento:Consciência e Consciência de
Si - Em Revista Cruzamentos Ed. Criação Humana – Porto Alegre RS – 2000
HYPPOLITE, Jean - Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel – Trad.
André José Vaci, Et All – Ed. Discurso Editorial – São Paulo, SP – 1999.
NETO, Paulo Vieira – A independência e dependência da Consciência de SI: Dominação
e Escravidão.