12/17/2015

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A DIALÉTICA DO SENHOR ESCRAVO E O PROCEsSO DE DIGNIFICAÇÃO DO HOMEM PELO TRABALHO.



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Hegel, segundo Marx acreditava que “a essência do homem que se confirma enquanto tal é o trabalho”. Entretanto, essa afirmação não parece ser o suficiente para o entendimento de uma filosofia política que visa a uma reconstrução do entendimento do
conceito de consciência de si, presente no movimento contínuo (caracterizado pela luta de vida e morte) pelo reconhecimento. Esse reconhecimento que nos torna consciências de si reconhecidas de modo objetivo, aparece, em um primeiro momento, como necessidade para os sujeitos (que querem se afirmar autônomos) no embate entre si
(consciências de si não reveladas).

Quando as consciências de si se reconhecerem enquanto possíveis consciências
de si reveladas, elas não enxergam no outro sujeito apenas um meio de conseguir seu
intento, mas se entendem mutuamente como dois sujeitos iguais, que, ao fim ao cabo,
têm o mesmo intuito (de serem reconhecidas enquanto consciência de si). Neste quadro,
o que nos resta é tentar entender o modo como a relação submisso e soberano aparece
nesse cenário em que o trabalho seja o modo de dignificar o homem enquanto
essencialmente homem. Para tanto, devemos concordar que o reconhecimento almejado
pelas duas consciências de si mantém relação de equivalência a confirmação da essência
de ser um ser humano. Mas isso não é suficiente, pois o reconhecimento assim
apresentado, de modo unilateral, seria contrário ao que é afirmado na seção 178 da
Fenomenologia do Espírito

A consciência de si é em si e para si quando e por que é em
si e para si para uma Outra; quer dizer só é como algo
reconhecido. O conceito dessa sua unidade em sua
duplicação, [ou] da infinitude que se realiza na consciência de
si é um entrelaçamento multilateral polissêmico. Assim seus
momentos devem, de uma parte, ser mantidos rigorosamente
separados, e de outra parte, nessa diferença, devem ser
tomados ao mesmo tempo como não diferentes, ou seja,
devem sempre ser tomados e reconhecidos em sua
significação oposta (HEGEL, 1992/2002, p142).


Se a consciência de si deve ser “em si e para si quando é em si e para si para uma
outra”, isto é, é em si e para si para outra consciência de si igual a ela mesma, então o
reconhecimento não pode ser unilateral, pois uma vez que entendido dessa forma, passa
a se configurar como uma via de mão única que ao fim ao cabo, não confere a ambos os
sujeitos a dignidade enquanto ser humano. Portanto é multilateral enquanto que se
destina a ambas as partes integrantes do processo envolvido na luta pelo reconhecimento
e é polissêmico na medida em que estamos tratando de duas consciências de si, que se
entendem como conscientes de si, de sua realidade, e de sua essência humana
(KOJÈVE, p. 11), e que expressam a sua certeza de si subjetiva através da palavra “Eu”.
Por esse motivo a imagem que podemos melhor utilizar para identificar essas duas
consciências de si conflitantes é aquela que nos é dada na seção 182 da Fenomenologia
do Espírito, em que ambas consciências de si se vêm como uma espécie de objeto que
funciona de modo independente do objeto usado de modo instrumental

A primeira consciência de si não tem diante de si o
objeto como inicialmente é só para o desejo; o que tem é um
objeto independente para si essente, sobre o qual portanto
nada pode fazer para si, se o objeto não fizer para si o mesmo
que nela faz. O movimento é assim, pura e simplesmente, o
duplo movimento das duas consciências de si. Cada um vê a
outra fazer o que ela faz; cada uma faz o que da outra exige –
portanto faz somente o que faz enquanto a outra faz o mesmo.
agir unilateral seria inútil pois o que deve acontecer só pode
(etuar-se através de ambas consciências (HEGEL, 1992/2002,.

A consciência de si, em certa medida, perceberia na outra consciência de si a sua extensão. O sujeito sabe da necessidade da existência que o outro sujeito tem e que para tanto necessita ser reconhecido enquanto consciência de si. Por esse motivo, as consciências de si devem suspender a sua alteridade uma vez que acreditam que os seus desejos devem ser saciados em detrimento ao desejo do outro. Por esse motivo a analogia de algo estático como a imagem de um objeto refletida pelo espelho, não traria à tona da discussão a ideia de uma consciência de si conflitando com outra consciência de si, uma vez que a imagem depende do movimento do objeto e não a vontade da coisa refletida, respectivamente a consciência de si dominante e a consciência de si dominada, inseridas no embate de vida e morte (NETO, p118). O desejo de ambas as consciências de si é que o outro atue como uma espécie de objeto ativo que tome as decisões necessárias para que o seu desejo seja realizado. Desse modo, “a luta pelo reconhecimento é o processo de estabelecimento de uma identidade através da não
identidade” (PERTILLE, 2000, p.71). Isto é, é a luta pela identidade (pelo ser reconhecido enquanto consciência de si) através da negação da identidade de outrem. Um último aspecto relevante a nossa investigação sobre a relação entre soberano e subordinado é que as consciências de si, antes do embate de vida e morte, não podem ser consideradas consciências de si, uma vez que não colocam em risco a sua própria vida. Não há a luta pela identidade, não há a luta por aquilo que nos traz o
reconhecimento enquanto humanos. A luta pelo desejo de ser reconhecido será melhor
abordado nas linhas que se sucedem.

O movimento dialético envolvido na luta pelo reconhecimento só é possível uma vez que os sujeitos elegem como prioridade o próprio reconhecimento enquanto consciência de si em detrimento ao cuidado com a própria vida. A oposição vida e morte, aparece nesse cenário como uma espécie de marcador definitivo da relação estabelecida entre as partes, em que o resultado final almejado é a relação de submissão e dominação. Isso porque A vida é a oposição natural da consciência,
independência sem a absoluta negatividade, assim a morte é a negação natural desta mesma consciência, a negação sem a independência, que assim fica privada da significação
pretendida do reconhecimento” (HEGEL, 1992/2002, p146). A vida é a oposição natural à consciência uma vez que não é negativa, isto é, que não possui em si uma ação negadora assim como no caso das duas consciências de si. Quando se encontram, elas querem ser reconhecidas, e para tanto precisam negar aquilo que torna o outro igual a si: o reconhecimento enquanto consciência de si. Se o resultado final do embate for a morte, também não existirá o reconhecido, pois assim como a vida, a
morte também é um resultado que nega à consciência de si a verdade objetiva (antes certeza  subjetiva) de seu estatuto. O que temos não é apenas uma redução quanto à existência dos seres humanos enquanto fazendo parte de uma natureza, mas as condições para que o reconhecimento de uma consciência de si ocorra. Por esse motivo a luta de vida e morte é o meio pelo qual o sujeito, ou consegue garantir a sua existência enquanto consciência de si, ou se submete ao senhor como servo, ou ainda, perece após o embate.

Nesses três possíveis resultados o que está em jogo não é a simples oposição entre a vida e a morte, mas a ideia de um complexo maior que a referida oposição clássica. O sistema se apresenta como um todo na medida em que a vida é posta em questão, pois desse modo a consciência também pode ser colocada em jogo (NETO, 122), na medida em que é no meio natural que o reconhecimento objetivo das consciências de si pode vir a se expressar. Isso tudo só é possível porque ocorre no meio natural: o homem só é real quando vive no mundo natural (KOJÈVE, 1933-1939, p. 19), assim como o reconhecimento que se tem só é possível objetivamente enquanto ocorre na presença de outras consciências de si que podem reconhecê-lo como tal. Desse modo a certeza de uma consciência de si, eleva-se a uma consciência de si verdadeiramente revelada, pois ao arriscar a vida consegue expor o seu ser para si, ao passo que nega também o ser para si de outrem.

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A destruição da autonomia daquele que perde o embate é uma engrenagem necessária do processo de reconhecimento, uma vez que é através dela que o outro se afirma consciência de si (KOJÈVE, p. 20). Mas a conservação do indivíduo também lhe passa a ser fundamental para a sua existência, como já é fundamental para o seu reconhecimento enquanto consciência de si. Enquanto uma pessoa torna-se sujeito, a autonomia de sua vida não é mais um dever seu, uma vez que opta em manter a sua
própria vida após o embate

No entanto, essa vida, que é eu mesmo e primeiramente
a vida biológica, é o que me escapa absolutamente; encarada
como outro, é o elemento da substancialidade com o qual não
posso me confundir completamente enquanto sou sujeito. É a
substância a substância universal, indestrutível, a essência
fluida igual a si mesma, como reflexão porém, a consciência de
si significa a ruptura com essa vida, da qual a consciência
infeliz experimentará o caráter trágico em sua totalidade
(HYPPOLITE, P176).

Assim quando o sujeito se afirma como consciência de si, ele deixa de fazer parte
daquela natureza que antes era sua exclusividade e passa a manter certa relação de poder com indivíduos que têm a mesma capacidade que ele de dominar. Mas o fato de ser vitorioso lhe confere o estatuto de poder comandar a vida do outro, que antes era livre e fazia parte da natureza enquanto sujeito consciente de si não revelado e autônomo. A vontade desse sujeito infeliz que passa a ser dominado era sua e apenas sua. Ao se tornar servo de seu senhor a vontade realizada não é mais a sua, mas a de seu senhor. Enquanto que o senhor existe para si (HEGEL, 1992/2002, p147), o servo existirá apenas para a vontade do senhor, tornando-o sujeito-coisa. O súdito continua mantendo
contato com a natureza enquanto o senhor necessita do auxílio de seu servo para realizar qualquer tarefa. A humanidade que é conferida ao senhor só é possível porque ele lutou por ela, e ao conseguir o reconhecimento de modo objetivo é que pode se realizar como ser humano. Mas o seu reconhecimento não é um reconhecimento pleno na medida em que A consciência inessencial reconhece a sua humanidade (HEGEL, 1992/2002, p149) e ele não reconhece a humanidade do seu servo, e a toma como consciência inessencial. 

Essa consciência inessencial tem a função de realizar os desejos de seu senhor e na
medida que os realiza, afirma a verdade da consciência de si pertencente ao seu senhor.
Ela se nega, por reconhecer em seu senhor a autonomia perdida, mas não deixa de ser
uma consciência de si não revelada. Mesmo assim, esse processo, se estacionado não
poderia ser chamado de reconhecimento porque falta aquele reconhecimento que se dá
em todas as instâncias;
Mas para o reconhecimento propriamente dito, falta o
momento em que o senhor opera sobre o outro o que o outro
operaria sobre si mesmo; e o escravo faz sobre si o que
também faria sobre o outro. Portanto, o que se efetuou foi um
reconhecimento unilateral e desigual (HEGEL, 1992/2002,
p147).

O reconhecimento se dá de modo unilateral e dizer isso é continuar afirmando a
existência de um fator que se torna ausente a uma das consciências de si, que não é o reconhecimento enquanto consciência de si. E esse fator é tão importante quanto o reconhecimento, porque faz parte da constituição do ser humano, enquanto ser humano. O que deve ser revisto, antes de tudo, são dois aspectos cruciais que são complementares entre si. O primeiro “operar com o outro o que o outro operaria sobre si mesmo” (HEGEL, 1992/2002, p.191) e o segundo “o reconhecimento coloca a consciência de si diante de outra consciência de si através de certa relação de semelhança enquanto
que é um outro” (NETO, p.125).Isto é, é porque a consciência de si revelada se deparou com outra consciência de si revelada (ambas revelações subjetivas), cuja similitude fez-se perceber, e a luta pelo reconhecimento (reconhecimento esse, que é entendido como uma espécie de potencialidade de ambas) precisa de uma luta que envolva a vida e morte. Por esse motivo é ao agir de modo independente para alcançar aquilo que o senhor deseja, a consciência servil daquele que se sujeita não pode mais ser vista apenas como instrumento de realização dos desejos de alguém, mas é a expressão de uma atividade reflexiva de uma consciência de si não reconhecida, que opera com o outro aquilo que o outro não opera consigo e ao mesmo tempo reconhece o senhor enquanto consciência de si, mesmo negando esse estatuto para si.

***

A dialética do senhor e do escravo só é possível por causa da relação
desequilibrada estabelecida a partir do momento em que uma consciência de si torna-se
reconhecida e a outra não. Do esforço da consciência de si não reconhecida resulta o
produto final de seu trabalho. Mas aquele que serve ao seu senhor não se reconhece
porque faz as coisas para o outro, mas por se reconhecer em outra consciência de si
(NETO, p.126). Neste sentido, dizer que uma consciência de si se desenvolve mais que
outra, é afirmar que por causa de algum fator externo a si, ela consegue ser distinta
daquela consciência de si reconhecida por ela. Essa consciência de si passa por um
processo de formação, ela se molda de acordo com as necessidades do seu trabalho, e
ao mesmo tempo, transforma os objetos da natureza para melhor ajudar o seu senhor

É, portanto, o trabalho que forma ou educa o homem a
partir do animal. O homem formado ou educado, o homem
completo e satisfeito com sua completude, é necessariamente
não senhor, mas escravo, ou no máximo aquele que passou
pela sujeição. Não é nas coisas que a consciência reconhece a
sua autêntica estrutura, sua densidade e solidez interna, mas
(em outra consciência. (KOJÈVE 

Ao negar-se, em um primeiro momento, o processo de formação da consciência de si verdadeiramente autônoma inicia-se: o escravo precisa negar o seu ser para si caso deseje manter a sua própria vida. É o medo da morte que vai iniciar esse processo de formação da consciência de si verdadeiramente autônoma, pois está presente na consciência de si, ao passo que esse medo não está presente no senhor, apenas no servo (HEGEL, 1992/2002, p150). Por saber o como as coisas são na realidade natural, aquele que é escravo vai querer modificar a sua situação: ele sabe o que é ser reconhecido por causa da figura de  seu senhor. Ele o reconhece e sabe que o senhor depende dele para que o reconhecimento seja profundo. O senhor, por seu turno, nunca perdeu a batalha, não
sabe o que é servir ao outro, muito menos vai ter a vontade de mudar a sua situação como o servo tem, pois essa situação é a melhor que qualquer ser humano poderia ter. O servo, na medida em que satisfaz as vontades de seu senhor, acaba tornando-se senhor da natureza: é ele quem vai saber manusear um instrumento para fazer fogo da lareira de  seu senhor. Ao trabalhar para o seu senhor quem vai fazer a comida, cuidar da casa, das necessidades mais básicas da vida do seu senhor é o escravo. O desejo refreado pelo trabalho, forma o sujeito (PERTILLE, 2000, p.79), e na medida em que essa formação se estabelece, o senhor não a possui, porque não lhe convém. Não há a questão da
sobrevivência, muito menos a necessidade de se afirmar como capaz de satisfazer as necessidades de outrem, muito menos o medo da morte, pois desde o princípio do embate entre duas consciências de si não precisou mais se afirmar perante outra consciência de si como consciência de si: o seu intento já fora alcançado. Ele não se lembrará mais o que é o mundo hostil e como se defender sozinho por não ter experimentado o medo da morte.

O conceito trabalho, em grande medida, possui dois aspectos, um negativo e outro positivo, assim como a forma. É a partir da atividade reflexiva que o sujeito tem a possibilidade de exercitar a sua própria autonomia enquanto consciência de si. É ao entender como as coisas realmente funcionam na natureza, e observando como o seu senhor age perante ele, que o servo pode inverter dialeticamente a sua posição de súdito, na medida em que se reconhece como possível consciência de si reconhecida. Por ora, o que podemos concluir é que o trabalho, em grande medida, faz parte da essência do ser
humano, mas a restrição deve ser feita no tipo de trabalho. Se pegarmos Marx, e a sua descrição sobre o processo de alienação, veremos que o trabalho alienado não é o tipo e trabalho que dignifica o homem. Entretanto é por causa do trabalho alienado e das péssimas condições de trabalho que a relação estabelecida entre empregado e empregador (antes protagonizada pelas figuras do súdito e do senhor) que vão ocorrer os movimentos sociais.

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BIBLIOGRAFIA

HEGEL, Georg Wilhelm Friederich – Fenomenologia do Espírito – Trad. Paulo Meneses –
3a. Ed rev. - Petróplis, Rj – Editora Vozes/ Editora Universitária Franciscana – 1992/2002.

KOJÈVE, Alexandre – Introdução à Leitura de Hegel – trad. Estela dos Santos Abreu – 1a.
Ed - Rio de Janeiro, RJ – Editora UERJ.

PERTILLE, José Pinheiro - Dialética do Reconhecimento:Consciência e Consciência de
Si - Em Revista Cruzamentos Ed. Criação Humana – Porto Alegre RS – 2000

HYPPOLITE, Jean - Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel – Trad.
André José Vaci, Et All – Ed. Discurso Editorial – São Paulo, SP – 1999.

NETO, Paulo Vieira – A independência e dependência da Consciência de SI: Dominação
e Escravidão.

EUTANÁSIA: A Distinção Matar e Deixar Morrer



Introdução

A prática da eutanásia gera muitas discussões no campo ético, pois muitos teóricos
apontam que o correto seria levar em consideração o grau de sofrimento que a
situação gera ao doente, sem colocar no mesmo patamar o grau de sofrimento de
todos os indivíduos que cuidam dele. Vemos também algumas discussões sobre o
que poderia ser moralmente correto: se cabe ou não a outra pessoa da acabar com
o sofrimento daquele ente querido.

Para ilustrar umas das principais problemáticas podemos imaginar a seguinte
situação: um sujeito teria sofrido um acidente de carro, deixando-o em estado de
coma. Algumas pessoas poderiam dizer que o desligamento dos aparelhos que
deixam a pessoa viva poderia ser moralmente incorreto, uma vez que ela não sente
nada, apenas os seus familiares que estão sofrendo. Se o fim da eutanásia seria
apenas proporcionar uma morte confortável aquela pessoa que sofre, isto é, uma
morte digna, então a morte de uma pessoa que não consegue mais sentir, se
comunicar, presenciar situações, ordenar pensamentos não seria necessária,
porque não sente. Portanto essa prática beneficiaria apenas as pessoas que
realmente cuidam daquele sujeito. Definir o conceito de "boa morte" nestas
circunstâncias, parece ser equivalente a defender um dos lados da problemática
que aparentam ser antagônicos entre si: o doente; as pessoas que estão envolvidas
no cuidado com ele.

O problema na indefinição do que seja a boa morte não se detém a esse aspecto
apenas. Um segundo aspecto decorre deste e gera dúvidas quanto a legitimidade
da eutanásia, ou aquilo que podemos chamar de prática da eutanásia. A distinção
entre matar e deixar morrer entra neste cenário de indefinições como um divisor
daquilo que seria entendido como eutanásia e aquilo que poderia não ser
considerado como um procedimento que dê cabo à vida do sujeito, uma vez que,
num dos casos não se comete “o ato de retirar a vida do outro”. Portanto, o sujeito
que deixa o outro morrer ao natural não cometeria crime algum, mas deixaria a
natureza agir sobre o corpo do doente. Mas será esse o fator moral relevante ao
assunto? Existe uma diferença moral entre matar e deixar morrer ao natural?

O argumento a ser analisado ao decorrer das próximas linhas é aquele que versa
sobre a distinção entre matar e deixar morrer, usado por muitos filósofos como o
ponto principal de sua argumentação contra a eutanásia. Para tanto, iniciarei com a
análise dos tipos de eutanásia conhecidos em nossa sociedade, necessária para o
estabelecimento de parâmetros que visam distinguir a ação de matar e a omissão
ao deixar alguém morrer. Em seguida, analisarei o argumento contra a eutanásia
baseada nessas definições à luz do contra-argumento que James Rachels
apresenta à problemática, e uma possível refutação ao seu argumento.

I

A palavra eutanásia, de origem grega, significa boa morte. Mas dizer que essa é a
ideia central por trás da palavra não é suficiente para definir o que é a prática da
eutanásia em si. A primeira coisa que devemos levar em consideração é o bem
estar daquele sujeito que está incapacitado de dar cabo a sua própria vida, devido a
situação na qual se encontra. O problema é que nem sempre o sujeito consegue
expressar a sua vontade, e aquilo que é melhor a ser feito fica a cargo de familiares,
médicos e terceiros. Para tentarmos delimitar o que realmente é a prática da
eutanásia, vamos diferenciar o que é eutanásia ativa do que é eutanásia passiva, a
fim de entender o que realmente está em voga na distinção entre matar e deixar
morrer, que alguns teóricos acreditam ser o problema na prática da eutanásia.

A eutanásia ativa difere-se da eutanásia passiva, uma vez que no primeiro caso
temos alguém que executa uma ação que resulta na morte de um sujeito. No caso
da eutanásia passiva, a pessoa se encontra em um estágio avançado da doença e o
melhor a ser feito é abandonar o tratamento que o sujeito precisaria fazer para
manter sua vida por mais tempo. Apenas cuidados paliativos são ministrados ao
sujeito. A eutanásia ativa pode ser subdividida em três grandes grupos, a saber:
eutanásia voluntária, eutanásia não voluntária e eutanásia involuntária. A eutanásia
passiva tem apenas um caso que será descrito posteriormente.

A) Eutanásia ativa
Como já mencionado antes, alguém age para que o sujeito morra. Isto é, o sujeito
morre em decorrência de uma ação de uma outra pessoa e morre por vontade
própria ou pela vontade de terceiros. A eutanásia ativa pode ser subdividida em três
grandes grupos, a saber: eutanásia voluntária, eutanásia não voluntária e eutanásia
involuntária.

Em um primeiro momento, vamos pensar no caso hipotético de Micaela que sofre
um acidente grave de carro e fica impossibilitada de se movimentar, isto é, ela se
torna tetraplégica. Os médicos dão esse diagnóstico como irreversível devido ao
trauma na medula que sofreu. Sabendo que nunca mais terá a sua vida como antes
e que seus sonhos e planos vão ter que ser readaptados, fora a dor excessiva que
sente na nuca, decide pela prática da eutanásia. Vamos supor agora que Micaela
não sofreu um acidente de carro, mas está doente de leucemia em fase terminal. A
doença está tão avançada que ela se encontra inconsciente. Antes de entrar em um
estado de coma ela expressa aos seus familiares a vontade de não continuar viva
por muito tempo, caso dependa de aparelhos e outras pessoas para conseguir fazer
as suas atividades básicas diárias, como: manter a higiene corporal, se alimentar,
respirar e evacuar. Não gostaria de viver assim, pois acredita que isso não é vida, e
sim, um modo de prolongar o sofrimento de todos os familiares e o seu. Quando
entrou em coma o seu namorado praticou a eutanásia. Esses dois casos são casos
de eutanásia voluntária, pois o doente pede para que alguém dê cabo de sua
própria vida (em ambos os casos Micaela deu o seu consentimento de que preferia
morrer a viver naquelas condições). A pessoa pode estar consciente ou inconsciente
e no caso de estar inconsciente ela expressa a sua vontade antes de se encontrar
desse jeito.

Quando um sujeito é incapaz de dar o seu consentimento sobre o que acha melhor
fazer e não consegue expressar a sua vontade antes do estado avançado de sua
doença, sua vida é interrompida sem o seu consentimento. Este é o caso da
eutanásia não voluntária. Por exemplo: Maria entra em coma profundo após um
acidente de carro. Os médicos acreditam que ela não poderá mais viver como
antes, pois o que realmente a mantém viva são as máquinas: seus rins não
funcionam mais, seus pulmões foram comprometidos, perdeu parte de sua massa
encefálica. Vendo esses fatores, seu filho resolve desligar os aparelhos que a
mantêm viva. O poder de escolha não lhe cabe por causa das circunstâncias, o que
difere do caso seguinte, o da eutanásia involuntária.

A Eutanásia involuntária ocorre quando a pessoa é capaz de opinar se quer manter
a vida ou interrompê-la. A sua vontade não é respeitada, pois o sujeito não é
respeitado. Acaba sofrendo o procedimento que leva a sua morte. Vamos supor os
seguintes casos: (I) Carlos Alberto era um homem ativo, realizado com a sua vida,
mas um dia, quando competia em um campeonato de motociclismo, repentinamente
cai de sua moto sem alguma explicação aparente. Chegando no hospital, é
diagnosticado com um câncer brutal que o deixa preso a uma cama hospitalar.
Sabendo de sua situação, decide que o melhor a fazer é deixar a natureza agir,
prefere aproveitar os seus últimos dias de vida. Mas um parente, não suportando
mais ver a sua dor, decide praticar a eutanásia no ente querido desligando os
aparelhos que o mantêm vivo. (II) Rogério participava de competições de esqui
aquático. Um dia, não conseguiu se segurar na alça de suporte, indo sem controle
algum direção ao trapiche que estava próximo à praia. A pancada o deixou
tetraplégico, e por algum motivo que os médicos não souberam explicar, ele não fica
com alguma lesão cerebral. No hospital ele pensa na possibilidade de pedir para
alguém praticar a eutanásia, porém não explicita sua vontade. Um amigo solidário o
vê naquela situação e desliga os aparelhos que o mantêm vivo.

No caso da eutanásia involuntária a pessoa pode ser consultada, não consentir com
o procedimento e ser submetida a ele como no caso (I). Pode ocorrer também que o
sujeito deseja ou não deseja dar cabo de sua própria vida e alguém não lhe
pergunta o que realmente quer, como ocorre no caso (II). Em ambas as situações
não é levado em consideração a vontade do doente.

B) Eutanásia passiva

A Eutanásia passiva ocorre quando o sujeito se encontra em um estágio avançado
de alguma doença, ou sofre um trauma muito grave. Os médicos e familiares optam
por suspender tratamentos que prolongam a sua vida. Prolongar a vida do sujeito
com tratamentos poderiam carretar mais sofrimento, piorando a qualidade do
restante de vida que o sujeito teria. Assim, quando a pessoa está muito debilitada e
não se tem condições de salvar a sua vida, muitos médicos optam por “deixar a
natureza agir”.

Vamos supor um primeiro caso: uma pessoa se acidenta gravemente, não tem mais
metade da calota do crânio e por algum motivo que os médicos não sabem explicar
a pessoa continua viva. A pessoa não sente mais nada, e nunca mais vai se
reabilitar. A morte dela é eminente, mesmo que os médicos cuidem do sujeito a
pessoa não viverá por muito tempo, viverá apenas dias. O médico opta por deixar a
natureza agir, sem fazer procedimento cirúrgico que poderia manter a pessoa viva
por mais tempo.

Um segundo caso: uma pessoa é doente de câncer terminal, o estado é gravíssimo
e manter a sua vida significa estender o seu sofrimento e o de seus entes queridos
por mais alguns dias. O médico decide que o melhor é não submeter o paciente a
sessões de quimioterapia, pois poderia causar mais dor a todos. Alguns dias a
pessoa falece.

III

A distinção entre matar e deixar morrer aparece no escopo investigativo sobre a
eutanásia como uma espécie de divisor de águas de condutas moralmente aceitas.
Se pensarmos em aspectos legais, podemos achar que essa distinção baseia-se
naquilo que realmente um sujeito pode ser responsabilizado, sem levarmos em
consideração aquilo que realmente deve ser feito em dadas as condições.
Pensemos nos seguintes casos:

1. Carlos pode ganhar uma grande herança se alguma coisa
acontecer ao seu sobrinho de seis anos. Uma noite quando a criança
estava tomando banho, Carlos se esgueira para dentro da banheira,
afoga a criança e depois providencia para que tudo pareça um acidente.
2. No segundo caso, João também pode lucrar com a morte de seu
sobrinho, mas diferente de Carlos, ele assiste ao afogamento da criança e
não ajuda.

No primeiro caso, Carlos que comete o ato de matar o seu sobrinho poderia estar
agindo de modo mais censurável que João, uma vez que ele age para tirar a vida de
seu sobrinho, enquanto que no segundo caso ocorre apenas a omissão de socorro
por parte de João. Nos meios legais, as penas para quem mata e omite socorro são
diferenciadas, mas o sujeito não deixa de ser responsável pela ação ou omissão de
socorro que teve no momento do ocorrido. O que vale ressaltar é que a nossa
intuição moral continua a censurar os crimes em que alguém executa a ação de
matar um sujeito, e censura menos as ações que resultam em omissão de socorro.

Analisando esse caso problema à luz da distinção entre eutanásia ativa e eutanásia
passiva, podemos concluir que a pessoa que suspende os tratamentos que
prolongam a vida do sujeito, não seria culpada em mesmo grau como no caso da
eutanásia ativa? Alguns filósofos acreditam que existe uma assimetria, e por esse
motivo seria justificável que algum médico suspenda o tratamento daquele sujeito,
prestes a morrer, enquanto que a atitude daquele sujeito que pretende dar cabo ao
sofrimento do ente querido cometeria um atentado à vida. Assim, existe uma
diferença moral intrínseca nesses dois atos. Mas será que isso realmente ocorre?
James Rachels, contesta essa convicção ao expor no argumento abaixo a ideia de
simetria entre as duas ações. Retomando o exemplo anteriormente exposto,
podemos analisar da seguinte forma:

P1. Carlos, que mata a criança, é exatamente como João, que a deixa morrer,
exceto que Carlos mata alguém e João permite que alguém morra.
P2. O que Carlos fez é moralmente tão ruim quanto o que João fez.
P3. Se matar é em si mesmo moralmente pior do que deixar morrer, e matar a
criança (Carlos) é exatamente como deixar que a criança morra (João), exceto que
Carlos mata alguém e João permite que alguém morra , então o comportamento de
Carlos deve ser mais censurável do que o de João.
C1. Matar não é em si mesmo moralmente pior do que deixar morrer e Carlos matar
a criança é exatamente como João deixar que a criança morra, exceto que Carlos
mata alguém e João permite que alguém morra.
C2. Matar não é em si mesmo moralmente pior do que deixar morrer, e Carlos matar
a criança também não é exatamente como João ter deixado a criança morrer,
exceto que Carlos mata alguém e João permite que alguém morra.
C3. Carlos matar a criança não é exatamente como João deixar que a criança
morra, exceto que Carlos mata alguém e João permite que alguém morra.
C4. Matar não é em si moralmente pior do que deixar morrer
P4. Se houver uma importante diferença moral entre eutanásia ativa e passiva,
então matar alguém é moralmente pior do que deixar alguém morrer.
C5. Se aceitarmos P4 e C4, a eutanásia ativa não é pior do que a eutanásia
passiva, eticamente falando.

Mas se matar neste caso equivale a deixar morrer, então nos casos de eutanásia
passiva e ativa não existiria alguma diferença entre si, pois a ação do sujeito estaria
condizente com a sua intenção. A intenção neste caso seria fazer o bem aquela
pessoa que sofre ou aquelas pessoas que compartilham da dor do sujeito. Mas se
pensarmos no seguinte contraexemplo:

1. Carlos afoga seu sobrinho na piscina para conseguir a herança que os pais
do menino deixaram para ele.

2. João não salva o sobrinho do afogamento, pois não sabe nadar. Se entrasse
dentro d’água morreriam os dois. João decide não entrar e tentar salvar o
menino, pois teme a morte para si. O seu sobrinho também é herdeiro de
uma fortuna e a sua morte pode mudar a vida de João, pois é o herdeiro mais
próximo da criança.

Neste caso, matar e deixar morrer não são equivalentes, pois vemos dois homens
agindo por motivos diferentes. O que está em questão neste problema é que
existem fatores que apenas dizem respeito ao problema a ser analisado, em que a
formulação do contraexemplo não fornece motivos suficientes para julgarmos se a
eutanásia passiva seria moralmente melhor que a eutanásia ativa. A diferença entre
matar e deixar morrer não pode ser considerada como fator decisivo do julgamento
moral, não porque existe uma simetria entre as duas situações como Rachels
parece defender, mas porque existe a peculiaridade da ocasião em que o sujeito
estaria submetido. Assim, moralmente falando, deveríamos analisar a questão à luz
do conceito de intenção. “Qual intenção estaria por trás de nossas ações?” deveria
ser o questionamento feito, e não se “É pior matar ou deixar morrer?”.

BIBLLIOGRAFIA

BRUCE, Michael & BARBONE, Steve - Os 100 Argumentos Mais importantes da
Filosofia Ocidental -1ª Ed - Ed. Pensamento - Cultrix, 2013.

TORRES, João, C.B. - Manual de Ética: Questões de Ética Moral e Aplicada - 1ª EdEd.
Vozes, Porto Alegre, 2011.

SITES CONSULTADOS:

http://criticanarede.com/eticaeutanasia.html

4/04/2013

VOLTANDO AO PROBLEMA DAS OUTRAS MENTES


Saber se todos nós percebemos a mesma coisa, do mesmo jeito, aparenta ser uma necessidade para que nos reafirmemos como sujeitos realmente existentes no mundo. Pôr à prova as coisas que percebemos e criar teorias sobre elas é o modo como reagimos ao problema. A teoria do cérebro numa cuba, apresentada por Hilary Putnam, aponta um dos problemas mais intrigantes do conhecimento, a saber: se aquilo que percebemos pode ser tido como conhecimento genuíno pelas nossas mentes, e se estariam ligadas de algum modo aos nossos corpos. Um outro problema também deve ser levantado:  se realmente existem outras pessoas com consciência que não “eu”. Uma vez levantada a possibilidade de ilusão como ter certeza que as outras pessoas também existam?

Supomos que duas pessoas trabalham juntas numa loja que possui um sistema de ar-condicionado. Ambas precisam utilizar um uniforme que age como isolante térmico de igual modo. As condições a qual essas duas pessoas estão submetidas são as mesmas, embora a Maria sinta frio, e Joana não. Como explicar isso? As duas não estão submetidas a um mesmo ambiente? A explicação mais usual é que a experiência que uma vivencia não é a mesma da outra. Mas como isso poderia acontecer? Elas não estão submetidas a um mesmo meio? Como poderia uma sentir frio e a outra sentir calor? São perguntas que nós fazemos quando acontece alguma coisa que não respeita certo padrão pressuposto. No exemplo as duas meninas estão sentindo coisas diferentes, mesmo estando submetidas a um mesmo meio. O certo seria neste caso (para o nosso pensamento intuitivo) que, ou bem ambas sentissem calor, ou bem ambas sentissem frio.

 Agora se aceitarmos que cada uma sente o ambiente de acordo com os seus sentidos, então a experiência seria relativa a eles[1]. Mas se eu sinto o ambiente de um modo e tenho para mim que aquela sensação é real, e a outra pessoa afirma sentir o clima de modo diferenciado, quem diz que ela está correta? Ou ainda, será que eu tenho razões suficientes para acreditar que outras pessoas existam, tendo em vista que só tenho contato com a minha consciência e não a dos outros? As outras pessoas, o olfato, o paladar, tudo aquilo que percebemos seriam frutos da imaginação. Deste modo nada que conhecemos poderia ser tido como genuinamente verdadeiro.

Mesmo assim consideramos ser um disparate completo pensar que as coisas poderiam não existir, sendo uma ilusão, ou então que todas as pessoas que não eu são na verdade andrógenos sem consciência. Mas mesmo assim não temos razão nenhuma para afirmarmos que não é o caso de estarmos envolvidos em uma teia de ilusões, ou que essas pessoas realmente existam. Nagel apresenta um fator importante que tem por finalidade responder parcialmente o questionamento: o instinto. Dizemos que sabemos da existência de outros seres humanos conscientes de si, porque intuímos. Mas seria essa a resposta correta para o problema? Como assim o intuição? Quais são as razões suficientes[2] que legitimam o uso dos instintos neste caso?

O que posso afirmar até agora é que não existe uma razão suficiente, pois uma vez que os instintos fazem parte do nosso cérebro, e sendo ele o ludibriado, não temos como saber se realmente condiz com os fatos acreditar ou não naquilo que percebemos. Passemos, então para a análise do segundo problema: se existe uma ligação entre mente e corpo. Ambas as meninas do exemplo sentiram coisas diferentes dentro do mesmo ambiente. Isto quer dizer que tudo o que elas sentiram passou para o cérebro delas? Se aceitarmos que existe um cientista maluco aplicando choques no cérebro que está dentro de uma cuba (coma aponta a teoria de Hilary Putnam), o que ela pode sentir nada mais é que ilusão. Aí se põe em dúvida a existência da relação entre mente e corpo. Mesmo assim deixemos essa dúvida latente. Suponhamos, então que não há um sujeito maluco aplicando choques elétricos no cérebro, e que também a mente e o corpo existam. Deste modo o que é percebido passa por etapas para se chegar ao verdadeiro conhecimento. Tanto Blackburn, quanto Nagel apresentam um processo dualístico de obtenção do conhecimento: existe uma parte do conhecimento que se dá no mundo sensível, e outra parte que se dá na mente, no pensamento, no espirito ou no fantasma na máquina propriamente dito.

A questão agora está no como essa relação se dá: qual o processo envolvido na relação entre mente e corpo? A brincadeira proposta por Hilary Putnam parece seguir esse mesmo caminho: suponhamos que não exista corpo algum, e tudo o que tenhamos seja na verdade um monte de terminações nervosas. Mesmo assim, o autor parte do pressuposto que acreditamos na existência de um corpo e de uma mente unidos. E se assim o fosse como seria? Como esses dois estágios estariam interligados entre si? Por ora, posso responder parcialmente que o corpo entraria em contato com as coisas externas: sentiria as sensações. De algum modo mágico estas informações se alojariam na consciência.

Mesmo assim, essa não seria a melhor resposta para o problema. Por enquanto fiquemos com a seguinte constatação: parece que existem coisas que ocorrem no mundo externo e outras coisas que ocorrem nas nossas mentes. Como essas duas coisas se ligam, não sei, mas tenho certeza de que é a partir de um questionamento como esse que procuramos definir o que é conhecimento.

Bibliografia:

1.     Putnam, Hilary. Razão, Verdade e História. Publicações Don Quixote, 1992.

2.     Blackburn, Simon. Pense: Uma Introdução à Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1999.

3.    Nagel, T. Uma Breve Introdução à Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.



[1] Este trabalho seria desenvolvido após introdução a termos e concepções filosóficas, como por exemplo: o relativismo.
[2] Essa noção deve ser trabalhada previamente.
 
 

11/02/2012

IDEIAS ADQUIRIDAS EM HUME


Com o exemplo das cores, Hume pretende propor que existe um caso em que as ideias podem ser concebidas não por derivação de uma impressão, mas como derivação da indução da analise de ideias opostas impostas ao ser que percebe, apresentando-se como uma contradição ao principio da cópia. Para tanto é necessário investigar os três sentidos de ideia que aparecem no texto, a saber: ideia interna, ideia externa e ideia relativa.

Quando pensamos nas impressões e ideias em Hume, pensamos nas suas relações para que com as coisas percebidas. Sabemos que quanto ao grau de vividez e de força as ideias possuem um grau menor que a impressão, pois elas são concebidas como copias das impressões. Assim, por exemplo: quando uma pessoa sofre um acidente de carro ela vai sentir com muita intensidade o cheiro da gasolina, a dor no seu corpo, o suor no rosto por causa do nervosismo acarretado do susto que recebeu com o acidente, a imagem do acidente é muita mais chocante naquele momento. Agora imaginemos essa mesma pessoa contando do acidente para as outras pessoas. Ela vai se lembrar da imagem daquele dado momento. Ela até pode descrever como aquilo foi fielmente, mas a lembrança do uso dos sentidos daquele momento vai ser a única coisa que vai lhe restar, e não poderia naquele momento reproduzir a experiência vivida. Ou seja, quando falamos em cheiro de gasolina, vem a nossa mente a lembrança do cheiro da gasolina e não o cheiro em si, o que confere que a ideia de cheiro de gasolina não passa de uma “imagem” da impressão, ou uma cópia daquela determinada impressão sentida em um momento distinto.

Como podemos ver, no exemplo acima exposto, a ideia é uma copia e produto da impressão. Dizer isso é afirmar que se ela for um produto ela não poderia originar de modo algum alguma outra ideia, e de certo modo é isso que vai acontecer. Antes de tudo devemos notar que aparecem três sentidos distintos de ideias, a saber: 

a)  Ideia interna: é a ideia formada a partir das impressões que o indivíduo obtém da experiência;   
b) Ideia externa: é aquela ideia formada a partir da linguagem, ou seja, é um conceito que pode ser usado para descrever uma ideia entendida entre as pessoas usuárias de certa linguagem. Deste modo um cego consegue definir o que seja maçã, mesmo não tendo a ideia clara de como uma maçã especial seja;
c) Ideia relativa: é quando há certa comparação propriamente dita entre duas ideias distintas, em que pela indução temos uma ideia intermediaria e relativa do terceiro elemento.

Tomando estes três tipos de ideias, pensemos então na situação que Hume expõe no paragrafo oito da Investigação Acerca do Conhecimento Humano. A primeira ideia que percebemos no ser humano é a interna que é formada pelo ser que percebe. Ou seja, a ideia de azul que este ser possui é formada a partir de impressões distintas que formam ideias distintas da cor azul, a saber, a ideia de suas tonalidades. No segundo momento temos o preceito de tal ideia sendo apresentado pela linguagem. Assim uma pessoa que seja ex-vidente, agora cega, consegue imaginar algum tom de azul qualquer, porque a sua linguagem corresponde àquelas tonalidades de cores denominadas azuis. Assim quando falamos que passou um fusca azul ela pode pensar numa tonalidade desta cor que não corresponde a real e por isso a sua ideia na será perfeitamente idêntica a impressão de seu conhecido (neste caso devemos relevar que a impressão não corresponde a ideia formada, pois o sujeito que forma a ideia não é o mesmo que possui a impressão derivada da experiencia). No caso da ideia relativa podemos pensar como no exemplo que Hume expõe:

                      “Colocai todos os diferentes matizes daquela cor, exceto aquele único que ela não conhece, em sua frente, decrescendo gradualmente, do mais escuro ao mais claro. Certamente ela perceberá onde falta este matiz, terá o sentimento de que há uma grande distância naquele lugar entre as cores contíguas, mais do que em qualquer outro.”

Nesse excerto Hume tenta demonstrar que a pessoa pode sim conceber uma ideia a partir de dedução de outras duas ideias. O caso da cor é o único caso propicio para isso por permitir que a pessoa compare e perceba que existe um tom entre dois outros tons, que deveria estar ali, concebendo uma ideia daquele tom. Por esse motivo que Hume não muda a tese geral, porque aquela exceção não poderia virar regra tendo em vista que a relação entre ideias e impressões se dão de dada forma e não de outra. Finalmente, o modo como as pessoas adquirem o conhecimento para Hume é aquele exposto anteriormente.

10/08/2012

ANÁLISE SOBRE OS DOIS PREFÁCIOS DA" CRÍTICA DA RAZÃO PURA"



Essa breve reflexão terá por intento apresentar, comparar e analisar o que os prefácios convergem quanto ao objeto de estudo da Crítica da Razão Pura. Pontos relevantes serão apresentados tentando explanar o como ambas ajudam a entender a verdadeira proposta da obra em questão, que é a analise da relação entre coisa conhecida, e ser que obtém conhecimento.

O primeiro prefácio da Crítica da Razão Pura apresenta certa preocupação na organização e manutenção da metafisica como ciência viável, afirmando a diferença entre questões que podem ser respondidas e as questões que não podem ser respondidas em AVII. Em A VIII justifica afirmando que essas questões fazem com que a razão humana “caia em obscuridades”. Se acaso esse problema de fato persistisse, poderíamos testemunhar certa indefinição no que seja realmente a metafísica em seu exercício pleno. Poderíamos dizer, assim que o objeto da metafisica seriam obscuridades que o intelecto humano não poderia resolver, por primeiro gerar ambiguidade na definição de termos, e segundo lugar, por não respeitar princípios lógicos básicos, como por ex.: o principio de não contradição, sendo assim as resoluções de tais problemas impossíveis. Para Kant o problema estava em conceber este tipo de questão fazendo parte da metafisica, e por isso era preciso delimitar o objeto de estudo da metafisica. Ou seja, era preciso entender como a razão poderia ser utilizada para se obter um conhecimento verdadeiro das coisas. Por esse motivo era preciso delimitar os limites da razão, sendo este o papel do “tribunal da razão” entendido em A XI. Esse tribunal tem como objetivo maior assegurar que a razão seja realmente entendida como parte do processo cognitivo e como as coisas podem estar funcionando

Em A XII podemos notar que a razão em si não poderia ser baseada em experimentações por possuir uma base frágil para o entendimento das coisas. Isto é, Kant dá indícios de que existe algo a mais no processo de conhecimento das coisas. O segundo prefácio apresenta a ideia de “revolução copernicana”, cujo entendimento das coisas pode ser obtido a partir da formação de juízos sintéticos a priori. É um sistema metafisico proposto por Kant onde o que deveria ser avaliado não são os conceitos que determinam certa coisa sendo tal “x” mas sim, deveríamos possuir um conhecimento a priori dela. Podemos notar que a ideia principal no caso do prefácio dois, é de fugir da base empírica na metafisica, como propõe Torretti, deixando de compara-la com outra ciência qualquer, pois não só o empirismo faz parte do processo de obtenção de conhecimento, mas também a analise racional da ideia de objeto e a sua relação com o ser que percebe. Assim em contrapartida a Locke, Kant propõe uma metafisica baseada em um eixo principal: a análise da relação entre coisa percebida e ser que percebe.

Assim sendo "alterar o método que a metafísica até agora seguiu, operando assim nela uma revolução completa, segundo o exemplo dos geômetras e dos físicos" vai ser o principal objetivo da metafisica.  A analogia apresentada neste excerto se refere a algo que pode ser explicado a priori e constatado a posteriori. Ou seja, está propondo um sistema misto, denominado juízo sintético a priori. O juízo a priori pode ser dividido em dois o a priori e o a priori puro. No primeiro caso podemos ter o juízo a priori de que, por exemplo: se alguém se jogar do abismo morrerá. Ou seja, a partir de dados empíricos eu formulei tal juízo, uma universalidade. Já o conhecimento a priori puro é aquele conhecimento que independe da constatação empírica. Ou seja, é o caso dos geômetras e é a esse tipo de conhecimento que Kant se refere no excerto.  Quanto a aplicabilidade podemos pensar no seguinte exemplo: o engenheiro vai construir num barranco uma casa; para que a casa não desmorone, ele precisa fazer com que a terra permaneça estável. O modo de se resolver isso é manter o barranco em uma angulação de 45°. Para isso ele precisa fazer o calculo para poder aplicar tal conhecimento na sua construção e garantir que a casa não caia. Ou seja, é um conhecimento tido anteriormente por abstração e posteriormente usado para este fim. Podemos notar que tal conhecimento geométrico é extensivo e possui certa relação. Portanto estamos falando de juízos sintéticos a priori.

 Outro exemplo de juízo a priori é o de Copérnico: que trata justamente dessa concepção, onde os objetos são tratados em relação com o ser que os percebe.  O problema que Copérnico tinha para conseguir mostrar o porquê que Marte fazia uma volta totalmente diferenciada em relação à  terra, é um exemplo que mostra a relação entre os conhecimentos a priori e a posteriori (como sendo partes do conhecimento). No momento que temos um cálculo que diz que a rota que marte deveria seguir era X, enquanto que na observação empírica constatava-se que a rota tomada na realidade era Y constatou-se a possibilidade de que algo não estava sendo levado em consideração: o posicionamento da Terra. Quando colocou a Terra em uma posição fora do centro, Copérnico percebeu que não se tratava de erro de cálculo e sim de um erro posicional, por ter constatado nos novos cálculos. Isso quer dizer que o ponto-de-vista da observação poderia estar errado porque a contraprova mostrava isso. Assim sendo, era preciso muito mais que a observação e sim uma base racional para provar o que realmente acontecia no céu.

Concluo afirmando que ambos os prefácios se complementam e juntos conseguem demonstrar perfeitamente o intuito da critica da razão pura. Isto é mostrar que o verdadeiro objeto de estudo não é a coisa percebida, como sendo um objeto conhecido por meio dos sentidos puramente e sim a relação entre conhecimento empírico e racional que podemos ter com as coisas conhecidas. A analogia feita com os geômetras e a proposta da revolução copernicana na filosofia, nada mais são que pontos correspondentes da mesma teoria e que procuram responder o como se dá a possibilidade de formular juízos sintéticos a priori, buscando de certo modo uma  nova significação da metafisica.

6/30/2012

"BLADE RUNNER" E O PROBLEMA DAS OUTRAS MENTES


O problema da existência de outras mentes está relacionada com a ideia de ceticismo quanto a existência de um corpo vinculado a uma mente, pois uma vez aceita tal ideia, podemos nos perguntar se essa relação também ocorre com outros sujeitos que percebemos a sua existência. O filme “Blade Runner”, a meu ver, tenta discutir melhor essa ideia na figura dos androides, uma vez que eles aparentam sentir algo por outros androides, ou quando que possuem vontades e sentimentos humanos. Assim podemos nos perguntar se a relação mente e corpo se dá de que modo nos outros seres: É uma tentativa de explicar a possibilidade de interação entre mente e corpo, onde o pressuposto básico não estaria ligado somente a minha mente, e sim a ideia de existência de mentes e corpos que não sejam os meus, por exemplo.

O que podemos destacar, em primeiro momento é como podemos entender as coisas que percebemos. Se formos um tanto coerentes com o nosso mundo sensitivo, e assumimos sua existência, dizemos que conhecemos através de experiências sensíveis, e que tudo o que sentimos ou pensamos possuem certa relação de causa e efeito com as coisas mundanas. Exemplo: a visão. Quando enxergamos um ônibus desgovernado vindo em nossa direção, a reação que temos naquele instante é de sair do caminho dele, buscando a conservação da vida. Ou seja, utilizamos o nosso aparato perceptual, fazemos uma leitura da situação com a nossa mente, e concluímos que se continuarmos parados no mesmo lugar seremos atropelados e perderemos a vida corporal. Podemos notar, portanto, que com as sensações que sentimos através do nosso aparato perceptual buscamos de certa forma, analisar a situação, e o fazemos através da mente. Agora, podemos supor dai que qualquer outra pessoa faria o mesmo tipo de relação mental? Agora pensemos no caso de uma pessoa cega. Ela possui sentidos ela não enxerga o ônibus vindo em sua direção, porem ouve. Ao ouvir o ônibus o cego não sabe que este passará por cima de si ao se aproximar. Ou seja, a pessoa não fará a mesma relação mental que a outra pessoa fez. A relação que ela faz com a mente e o corpo é totalmente diferenciada daquela feita por uma pessoa vidente. Mas se pudesse enxergar provavelmente teria salvado sua própria vida.

Pensemos agora no caso dos mutantes e dos mortos-vivos. O que Blackburn pretendia ao mostrar a possibilidade de existência dessas duas subespécies é que esses dois grupos poderiam aparentar ser seres humanos, ao passo que não eram, pois possuíam todas as características que os definiam como tal. Assim poderíamos nos perguntar o que serve como pressuposto inicial para que possamos afirmar a relação entre mente corpo. A existência ou não de consciência era o ponto principal da discussão. Se assumíssemos que os mortos-vivos não tivessem consciência, como poderíamos explicar as reações que possuíam quando fossem machucados. Deste modo podemos nos perguntar se há a possibilidade de existir seres que possuem esta relação e se é algo exclusivo do ser humano.

O filme Blade Runner aborda bem este questionamento. A história toda se passa na Los Angeles de 2019, em que a ciência estava tão avançada a ponto de ser viável a produção de androides. Esses androides foram criados com o objetivo básico de servir aos seres humanos para os mais diversos fins, mas a humanidade não os queria mais e resolveu descarta-los por diversos motivos. Harrison Ford faz o papel do caçador de androides Rick Deckard, que consegue identifica-los e os liquida. Mas em determinado momento coisas estranhas vão ocorrendo com Rick e com os androides aos quais ele vai se envolvendo ao decorrer do filme. A androide Pris é um exemplo: parece que ela aprende a desenvolver sentimentos humanos quando que mostra interesse por Rick e acaba se apaixonando por ele. Também no momento quando ela começa a pensar até que ponto consegue pensar, ou se tudo o que ela aprendeu (ou acha que aprendeu) não passam de programas implantados no seu chip. O que podemos notar é que o 
questionamento anteriormente feito pode ser respondido de modo afirmativo. Outro androide, o Roy, sugere isso. Ele tinha o desejo de viver o máximo de tempo possível, e acreditava que aquele não era o momento de sua partida. Ele queria continuar vivo a todo o custo. Para tanto foi procurar o seu criador e pediu que essa o ajudasse no seu intento. Chegando lá, o seu criador lhe disse que isso era impossível de ser feito. Por isso Roy mata-o em excesso de fúria.

O comportamento de Roy durante o filme é muito interessante. Parece que ele vai deixando de ser máquina e vai virando humano. Podemos notar que isso ocorre quando percebe a morte de sua companheira. Ele sente a morte dela, e por esse motivo também tenta matar Rick. Deste modo podemos perceber que há a possibilidade de uma coisa que não seja humana fazer relações com as coisas

6/09/2012

REFLEXÕES SOBRE O IDEALISMO DE BERKELY




A TESE IDEALISTA DE BERKELEY

George Berkeley mostra as suas verdadeiras intenções quando que inicia o tratado sobre o conhecimento humano. Pretende encontrar a verdade fugindo do senso comum sem cair em certo grau de ceticismo (que é caracterizado por ele como sendo a obscuridade das coisas). Quando isso acontece, afirma que o espírito humano tenta participar da infinidade das coisas se esquecendo de sua finitude. Deste modo podemos identificar, em primeiro lugar, que há certo conhecimento mediante as possibilidades de se conhecer, e em segundo lugar, vemos as restrições quanto ao uso das faculdades cognitivas, ou seja, só podemos utilizá-las para conhecer coisas finitas. Aparece aqui o modo de conhecimento utilizado no tratado: conhecemos por similitude, ou seja, similar conhece similar. No momento que estabelecemos isso estamos, em última análise, afirmando que as coisas finitas podem ser conhecidas por nós, por termos a mesma característica.

A investigação ocorrerá na tentativa de encontrar o modo como o conhecimento se configura para nós e como ele vai ser adquirido. Assim estabelece um ponto muito importante para a organização do tratado onde a linguagem demonstraria a capacidade do ser humano de construir ideias abstratas, e resolver questões que não estão presentes no espirito humano. Parece que Berkeley tenta estabelecer a distinção entre questões possíveis e impossíveis de serem resolvidas pelo ser humano, e dentro das questões possíveis estabelece outra distinção acerca das qualidades destas, onde elas poderiam ser classificadas como abstratas (o conhecimento se dá através da linguagem, mais precisamente a lógica como forma de estabelecer certas ligações entre as ideias abstratas, e a metafisica que vai tratar dos questionamentos das coisas que estão além das coisas físicas, porém o nosso intelecto consegue conceber, ou procurar certas ligações, por se tratar de questionamentos que não implicam as concepções de finitude ou infinidade para serem resolvidas,) ou não abstratas (são aquelas coisas físicas que o espírito humano conseguiria compreender muito bem através do uso dos sentidos somente).  No caso das coisas não abstratas, podemos ver que quando utilizamos do nosso aparato perceptual para distinguir uma pessoa da outra, por exemplo, utilizamos as características que qualificam este ser em grupo. Quando as pessoas descrevem, por exemplo: a Vera Fischer, uma mulher alta, cabelos loiros e longos, pele bronzeada, olhos verdes, silhueta definida, etc. a caracterizamos a partir de um grupo de qualidades. O espírito humano consegue conceber tranquilamente a imagem mental, ou até consegue identificar a pessoa como sendo uma e não outra.

O modo como abstraímos e chegamos à concepção de uma característica particular é o que vai nos permitir determinar o que seja uma mulher no geral (se é que podemos utilizar tal termo). Isto é, quando generalizamos uma ideia, estamos em última análise considerando que ela vai servir para definir algo que se apresente no interior de dado conjunto quando sendo esta coisa em particular, porém apresentando a ideia geral de ser algo, não fora do corpo, mas sim a ideia daquilo em si. Tomando como exemplo, ainda a Vera Fischer, podemos ver que a ideia particular que fazemos da pessoa Vera Fischer pode se tornar uma generalização da ideia de mulher a partir da análise de que o que a torna mulher e o que ela tem em comum com outras mulheres. E é a partir dessas características que o grupo de mulheres é estabelecido, e não chamado por outro grupo. Para tanto, é preciso estabelecer o que são essas características em geral que tornam um ser mulher e não outra coisa.

 Outro exemplo que melhor se adequa a situação e aparece no corpo do tratado é a questão da cor: um corpo qualquer possui certa coloração. No instante que analisamos queremos estipulá-la como sendo pertencente a algo em particular. Assim quando apontamos para algo e afirmamos que este algo tem coloração tal, estamos fazendo associação com a ideia abstrata de cores que temos e estipulamos a partir da ideia de uma cor em particular. Ou seja, conseguimos dizer que verde é um verde específico, pois no nosso espirito catalogamos, de certa forma, tudo o que for verde, depois tudo o que for cor, para termos certa concepção de cor no geral. Assim conseguimos especificar a cor do objeto cadeira: dizemos que ela é verde porque possui aquela cor particular que o nosso espirito consegue comparar com as outras cores e por ultimo concebe a ideia geral de cor.

Para resolver de uma vez por todas os impasses que sua teoria poderia causar, Berkeley procura mostrar que a capacidade de abstrair as coisas no geral deve levar em consideração esses dois aspectos importantes que consistem:
a)     Abstraímos qualidades das coisas que estão em certo grupo. Para conseguirmos tal intento precisamos considera-las fora do feixe de ideias que configuram a coisa;
b)     Abstraímos estas ideias tendo consciência de que elas se apresentam dependentes da ideia de algo (elas só existem dentro deste sistema).

Assim deste modo o que tomamos como triangulo no geral não seria um triangulo específico e sim as características que generalizam a ideia de triângulo: uma figura geométrica, que possui três ângulos e três lados. Assim podemos ver sobressair as características que definem um triangulo no geral a partir de características particulares dos elementos que estão inseridos no grupo dos triângulos, porém inseridos dentro de uma ideia de um corpo complexo, em que tais características não poderiam ser encontradas fora de um corpo: são os casos do ângulo e da extensão. Assim as ideias particulares de triângulo isósceles, triângulo escaleno, triângulo retângulo e triângulo equilátero, possuindo as qualidades em comum: três ângulos e três extensões na formação da ideia da figura.


ASPECTOS DA TESE REALISTA REFUTADOS POR BERKELEY

Os realistas aceitam como Berkeley que as ideias existem para um sujeito, porém existe algo que não é ideia existindo para além da percepção sendo similares a ideias. O parágrafo quatro do corpo do tratado mostra um aspecto importante da tese realista: as coisas podem existir mesmo quando não são percebidas, logo as coisas poderiam existir sem um ser que percebe. O parágrafo cinco possui a finalidade de desmontar essa tese realista, afirmando que é impossível abstrair as qualidades dos objetos que não conhecemos. Se aceitarmos Berkeley, com sua teoria de que as coisas deveriam ser percebidas para existirem, estamos afirmando que as coisas são feixes de ideia. Agora se aceitarmos a teoria realista, podemos cair em outro problema: a relação entre incomparáveis (ex. inodoro e odoro). A percepção para Berkeley teria o papel de garantir a existência da coisa. Assim se algo não é percebido, não vai existir. Com esta afirmação realista, levanta outra questão, quanto à substancialidade da coisa. Isso suscita outro problema: parece que estaríamos percebendo a coisa fora dela mesma. Ou seja, não estaríamos usando os sentidos para conhecer a coisa, estaríamos tratando-a como sendo algo que não ela mesma e que ela enquanto coisa poderia ser percebida sob aspectos diferenciados, ora como coisa perceptível, ora como outra coisa não perceptível, ferindo, portanto, o principio de não contradição. Berkeley afirmava que estaríamos tratando a coisa como não sendo ela mesma.

 Outra questão que Berkeley aponta no seu tratado é o problema de afirmarmos que a matéria poderia ser uma substância não sensível. No parágrafo nove são diferenciadas as qualidades primárias (extensão, forma, movimento, repouso, solidez e número) existentes na matéria das coisas, das qualidades secundárias (cor, som e sabor) percebidas através dos sentidos. Berkeley desmonta a teoria da seguinte forma:
P1. A matéria seria uma substância inerte não sensível e possui as qualidades primárias subsistindo em si.
P2. As qualidades primárias existem dentro do espírito humano e são ideias.
P3. Ideia assemelha-se à outra ideia; a relação de semelhança só pode se dar entre ideias.
CL1. Como a ideia é composta pelo espírito, só poderia ser produzida por algo não inerte, pois estamos tratando em primeiro: de algo que percebe; em segundo: como matéria é algo percebido, logo deve ter alguma outra coisa que a percebe.
CL2. Se algo é percebido, então deve ser composto por um feixe de ideias, que forma a ideia daquela coisa, e não as suas qualidades primárias por si só.

Assim sendo podemos notar que a coisa sensível é formada por feixe de ideias (que é a percepção frequente de um conjunto de ideias que compõem uma ideia em particular), que são oriundas de percepções particulares, onde deve existir um espírito que as percebe. Se não for percebido por um sujeito (pelo espírito do sujeito) deve ser percebido por um espírito divino, pois assim garante a existência das coisas e deste modo refuta a tese realista respondendo a seguinte pergunta: O que garantiria a existência da coisa quando que não é percebida por um ser que percebe?